domingo, 10 de junho de 2012

TRANSGÊNICOS / ÁFRICA

O direito de dizer "não"


No Mali, uma das vítimas do dumping do algodão praticado pelos EUA, um júri de agricultores rejeita as pressões para introduzir dos OGM e defende uma agricultura de inclusão social e respeito à natureza Roger Gaillard - (01/04/2006)

Em janeiro, um surpreendente exercício de democracia participativa reúne 43 pequenos agricultores, com uma grande participação feminina Um homem alto e magro, usando uma túnica azul turquesa, levanta-se rapidamente e toma o microfone. Com a voz vibrante, cavanhaque simpático e o dedo apontado para o ventilador, que tenta dar conta do calor do meio dia, ele dirige-se à assembléia em bambara, a língua local: "Por que pedem a nós, agricultores pobres, que aceitemos os transgênicos que os agricultores ricos do norte recusam?" Pode-se ouvir o burburinho de aprovação na platéia. Em seguida, o microfone passa a uma jovem agricultora que veio com seu bebê: "De que adianta produzirmos mais com o uso de transgênicos se nunca conseguimos escoar a produção a um preço justo?" A cena passa-se em Sikasso, pacata cidade do sul do Mali, no coração de uma província rural que produz dois terços da principal fonte de divisas do país (um dos mais pobres da África e do mundo): o algodão.
Durante cinco dias, de 25 a 29 de janeiro de 2006, um surpreendente exercício de democracia participativa reuniu 43 pequenos agricultores, com uma grande participação feminina. A pedido da assembléia regional de Sikasso (o parlamento regional) esses plantadores de algodão, vindos de toda a região, tinham como missão constituir um júri cidadão com o objetivo de avaliar as vantagens e inconvenientes de uma eventual introdução de organismos geneticamente modificados na agricultura do país. 
Batizado de "Espaço Cidadão para a Discussão Democrática", em alusão a mecanismos de debates públicos já bastante conhecidos no Mali, este júri - pioneiro na África Ocidental - foi patrocinado por parceiros europeus engajados na promoção de métodos participativos na avaliação de escolhas tecnológicas e políticas de desenvolvimento [1]. O fórum de Sikasso deve ser visto levando em conta as fortes pressões exercidas por multinacionais da indústria agroalimentar sobre os países africanos, sobretudo a Monsanto, norte-americana, e a Syngenta, suíça. Elas pregam a industrialização do setor agrícola e a abertura dos mercados aos cultivos transgênicos [2]. O principal alvo do discurso das multinacionais é o algodão Bt, que produz toxina eficaz contra certas pragas, o que teoricamente permitiria reduzir a necessidade de uso de pesticidas e garantiria aos agricultores melhores colheitas.
A África Ocidental é o terceiro maior produtor mundial de algodão: a commodity é de grande importância para essas companhias, que se beneficiam do apoio da Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAid), instituição com orçamento de 100 milhões de dólares destinados à implementação de biotecnologias nos países em desenvolvimento. Exigido pelo Banco Mundial, o processo de privatização da empresa maliana de algodão derruba a renda dos camponeses, embora a produção seja duas vezes maior Agricultura em crise, respostas distintas As respostas do continente a essas pressões são cheias de contrastes. A Zâmbia, apesar de ameaçada pela fome, recusou a ajuda do programa mundial de alimentação, que incluía grande quantidade de milho transgênico norte-americano; mas o Benin aceitou essa ajuda ambígua, apesar de ter adotado, em 2002, uma moratória de cinco anos para os produtos transgênicos. 
Na África do Sul, país de grande importância na indústria agroalimentar, o algodão e o milho transgênicos são cultivados há mais de dez anos, com resultados controversos. Em Burkina Faso, vizinho do Mali, os testes de campo do algodão transgênico acontecem desde 2003, apesar da oposição de diversos setores da sociedade. Bastante atentos durante o processo, os membros do júri escutaram quinze testemunhas vindas da África Ocidental e Meridional, da Índia e da Europa. Biólogos moleculares, engenheiros agrônomos, membros de organizações não-governamentais e delegados de movimentos camponeses responderam a diversas perguntas sobre as vantagens e desvantagens do uso de transgênicos: riscos para a saúde e o meio ambiente, aumento real da produtividade, fatores sócio-econômicos, questões éticas e jurídicas, sem esquecer a dimensão cultural, muito reveladora, porque subconsciente. Em bambara, OGM (organismos geneticamente modificados) se diz Bayérè ma’shi ("A mãe nutrição transformada"). Numa leitura de mundo animista, fortemente presente no Mali, sob um verniz muçulmano, a simples materialidade da genética - introduzir genes de uma espécie em outra - era razão de aborrecimento para diversos ouvintes. O problema crucial do direito de propriedade intelectual e das patentes de organismos vivos foi bastante discutido, sobretudo pela geneticista beninense Jeanne Zoundjihekpon, da ONG Grain: "As sementes Bt são protegidas por patentes que dão às empresas poder absoluto sobre os agricultores. 
Os pequenos agricultores não têm o direito de guardar as sementes de uma safra para plantá-las no ano seguinte, como sempre se fez, podendo haver processo judicial no caso de desrespeito." O argumento toca um ponto sensível, principalmente porque a cultura algodoeira está em crise na África Ocidental, lembra Mamadou Goïta, dirigente da coalizão contra os organismos geneticamente modificados e para proteção do patrimônio genético do Mali. A Companhia de Têxteis do Mali, com 60% sob controle estatal e os demais 40% sob controle da empresa francesa Dagris, tornou-se deficitária devido à desvalorização do franco CFA e à crise mundial do "ouro branco" — ainda que a produção anual passou tenha saltado de 320 mil para 600 mil toneladas, entre 1994 a 2005. A privatização da empresa, prevista para 2008, foi exigida pelo Banco Mundial, que a impôs como condição indispensável a qualquer ajuda ao governo de Bamako. Em razão do déficit, o preço pago pela empresa pelo quilo de algodão caiu de 210 francos, em 2004, para 160 em 2006 (cerca de R$ 0,65) enquanto o custo dos insumos químicos segue aumentando.
Nessas condições, o algodão não é mais rentável e diversos agricultores que haviam optado por sua monocultura já pensam em voltar à cultura de gêneros alimentícios (cereais, milho). Mamadou Goïta fez ainda uma proposta: "O algodão biológico é um trunfo para chegarmos aos mercados de países europeus que rejeitam os transgênicos. De qualquer maneira, as relações de força são muito desiguais quando há potências como os Estados Unidos, que praticam dumping ao subsidiar maciçamente a produção de algodão: 4 bilhões de dólares por ano, para 25 mil produtores, enquanto no Mali o algodão sustenta mais de 3 milhões de pessoas". Relatadas no dia 29 de janeiro à assembléia regional, o veredito e as recomendações do júri cidadão foram difundidas por rádios, que transmitiram os debates e pela televisão do Mali Veredito após amplo debate.
As multinacionais convidadas recusaram-se a comparecer ao júri camponês. "Nós solicitamos várias vezes o comparecimento da Monsanto e da fundação Syngenta", diz Barbara Bordogna, bióloga da rede interdisciplinar de biossegurança de Genebra e membro do comitê de direção do Espaço Cidadão para a Discussão Democrática: "mas estas empresas estão, ao que tudo indica, reticentes a entrar em um processo de debate aberto e transparente, sobre o qual não tenham controle". A Monsanto apoiou a presença, no júri, de agricultores que defendiam sua causa. Vindo da África do Sul, o agricultor Zulu T.J. Buthelezi cultiva algodão Bt desde 1996. Ele assegura que a experiência é conclusiva. Os hectares semeados com algodão transgênico resistiram a uma inundação que havia devastado as plantas convencionais. Ele se converteu totalmente aos transgênicos, inclusive ao milho, que consome sem danos a sua saúde. "Façam como eu, enriqueçam!", disse ele aos agricultores do Mali. Vindo de Andhra Pradesh, Estado do centro da Índia, P.V. Satheesh apresentava, ao contrário, um estudo metódico, realizado ao longo de três anos, mostrando que os agricultores da região que cultivaram algodão convencional obtiveram melhores resultados em suas safras do que aqueles que cultivaram a variante transgênica. Além disso, o algodão Bt não exigia menor dispêndio com pesticidas do que o convencional. O custo elevado das sementes Bt, somou-se à produtividade decepcionante e acabou por levar muitos pequenos agricultores à ruína.
Como os pedidos de indenização à Monsanto são categoricamente rejeitados, o estado de Andhra Pradesh recentemente proibiu a empresa de operar em seu território. Além desses depoimentos divergentes, pudemos escutar posições intermediárias, especialmente as de Ouola Traoré, agrônomo e chefe do programa de algodão do Instituto Nacional do Meio-ambiente e Pesquisa Agrônoma (INERA) do Burkina Faso, onde o algodão Bt é testado desde 2003, com início de comercialização previsto para 2010. "Somente pesquisas aprofundadas com variedades locais adaptadas a nosso clima permitirão determinar se os transgênicos são uma solução futura para a África Ocidental" disse ele. Mas sua defesa de uma pesquisa pública africana autônoma esbarrou em uma platéia desconfiada, já que é notória a dependência das instituições científicas do continente em relação aos financiamentos de lobbies interessados no desenvolvimento de biotecnologias. Dividindo-se em diversas comissões - uma composta somente de mulheres - em função do escopo de suas discussões, os membros do júri deliberaram durante todo o dia, antes de dar seu veredito:"Não". 
Por unanimidade, os agricultores reunidos em Sikasso rejeitaram qualquer introdução de transgênicos no Mali. A preocupação fundamental deles é a preservação das sementes locais e do conhecimento técnico para que não dependam das multinacionais:"Queremos ser senhores de nossas terras, não queremos nos tornar escravos", afirmou Brahim Sidebe, um dos porta-vozes. Por sua vez, Birama Kone enfatizou a preservação do modo de vida amistoso: "Nossos agricultores estão acostumados à colaboração mútua, os transgênicos poderiam destruir o senso de amizade e solidariedade. Se eu tenho uma área de plantio transgênico e meu vizinho não tem, os problemas de contaminação vão gerar conflitos entre nós". 
Representante das mulheres, Basri Ligoita preconiza a necessidade de pesquisas a fim de melhorar as sementes locais através de técnicas agrícolas clássicas e uma melhor formação dos pequenos agricultores, sobretudo nos métodos de agricultura biológica. Transmitidas no dia 29 de janeiro à assembléia regional do Sikasso, as recomendações do júri cidadão foram passadas ao público pelas rádios, que se revezavam na transmissão dos debates, e também pela televisão do Mali. Essas recomendações não têm nenhum poder decisório, mas nada impede que sejam levadas em conta, pois o Mali assinou o protocolo de Cartagena [3] sobre a biodiversidade. O projeto de lei resultante prevê a organização, em âmbito nacional, de eventos com a participação popular antes da pesquisa ou introdução de organismos geneticamente modificados. "Não queremos nunca os transgênicos - exclamou Lidigoita - e pedimos ao governo que impeça sua entrada em nosso território. Se os agricultores o cultivarem ilegalmente, queimaremos suas terras!" 

(Trad. : Leonardo Abreu)
fonte: http://diplo.org.br/2006-04,a1289

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