quarta-feira, 13 de junho de 2012

Terra Sonâmbula - Mia Couto


Ensinar a Sonhar: O Insólito nas Páginas Fantásticas da Terra Sonâmbula, de Mia Couto Em Destaque
Texto editado para o blog
O escritor moçambicano Mia Couto, para representar em sua ficção, a dor, a miséria e as conseqüências traumáticas da guerra civil, que se seguiu à anticolonial e que atropelaram o povo de seu país, tece a narrativa de Terra sonâmbula (1992), utilizando elementos que se aproximam do realismo fantástico e do maravilhoso e fazendo uma literatura de cunho engajado histórica e socialmente. Numa entrevista a Nelson Saúte, Mia Couto fala a respeito do que pensa ser a missão de um escritor em seu país:
O escritor moçambicano tem uma terrível responsabilidade: perante todo o horror da violência, da desumanização, ele foi testemunha dos demônios que os preceitos morais contêm em circunstâncias normais. Ele foi sujeito de uma viagem irrepetível pelos obscuros e telúricos subsolos da humanidade. Onde outros perderam a humanidade, ele deve ser um construtor da esperança. Se não for capaz disso, de pouco valeu essa visão do caos, esse Apocalipse que Moçambique viveu. (apud SECCO: 1999, p. 114).
Na ficção de Mia Couto, como nos autores mencionados, predomina a valorização da cultura tradicional africana. A presença acentuada do imaginário ancestral direciona as narrativas para o insólito. Os elementos fantásticos presentes no texto e oriundos das cosmogonias africanas, são os traços essenciais no confronto entre a tradição e o mundo atual e atuam aqui como sustentáculo para que se dê a resistência da população assolada pela guerra.

 A narrativa de Terra sonâmbula inicia-se com o velho Tuahir e o menino Muidinga abrigando-se num ônibus incendiado. O garoto, que fora encontrado num campo de refugiados, quer achar seus pais e isso é apresentado como justificativa da viagem, entretanto, a verdade é que eles "fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranqüilo." (COUTO: 2007, p. 09). Deparam-se com muitos corpos carbonizados. Quando vão enterrá-los, encontram um corpo estendido na estrada e junto desse, uma mala em que há uma série de cadernos que contam a história de Kindzu, o morto que ali estava. A partir desse ponto, duas histórias são narradas paralelamente: a viagem do velho Tuahir e do menino Muidinga, em onze capítulos e o percurso de Kindzu (história narrada em onze cadernos), que procura os naparamas (guerreiros abençoados pelos feiticeiros e que combatiam os "fazedores de guerra") e Gaspar, o filho de Farida, mulher por quem o jovem se apaixonou.

Nesse panorama desolador, sonhar é buscar refúgio para o sofrimento, é buscar esperança onde não há pistas que levem a ela, é ter a coragem de ousar buscar caminhos para suportar o tormento que parece não ter fim. A certa altura da narrativa, já no fim, no décimo caderno de Kindzu, o fantasma de seu pai, Taímo, lhe pergunta por que escreve:
- O que andas a fazer com um caderno, escreves o quê?
- Nem sei, pai. Escrevo conforme vou sonhando.
- E alguém vai ler isso?
- Talvez.
- É bom assim: ensina alguém a sonhar.
- Mas pai, o que passa com esta nossa terra?
- Você não sabe, filho. Mas enquanto os homens dormem, a terra anda a procurar.
- A procurar o quê, pai?
- É que a vida não gosta sofrer. A terra anda a procurar dentro de cada pessoa, anda juntar os sonhos. Sim, faz conta ela é uma costureira de sonhos. (p. 182) grifo nosso
Assim, o sonho é sinônimo de fé de que ainda há esperança, o que também é mostrado em uma das falas do velho Tuahir. "O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonha, a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.
A narrativa de Mia Couto constrói-se com um desfile de personagens e de situações que representam o culturalismo plural de Moçambique: o preconceito moçambicano contra os árabes, que os portugueses reforçaram; os naparamas, que lutavam com os "fazedores de guerra"; o velho Siqueleto, que já assistiu a tantas desgraças e não se deixa mais abater, a presença ameaçadora do colonizador, representado pelo personagem Romão Pinto; Nhamataca, que acredita poder cavar até conseguir fazer um rio; entre outros.
Numa sociedade mergulhada em uma profunda crise econômica e cultural, a ficção de Couto mostra a resistência "heróica" daqueles que, por uma veia mítica e pelos caminhos da tradição oral, ainda "ousam" ter esperança, não obstante estarem imersos em situações de barbárie, arbitrariedades e abuso de poder. Escrita que potencializa o valor dos sonhos e o seu talento para converter e regenerar a vida, representa uma literatura engajada no âmbito histórico e também social, que cria e recria o real opressor e opressivo, traços gritantes no Moçambique colonial e pós-colonial. 

Um comentário:

  1. Muito bom, há muito que aprecio a literatura do Mia Couto.O José Eduardo Agualusa, outro escritor, mas angolano, também faz muitas referências ao Mia Couto. São literaturas gostosas e que tem algo em comum com o Brasil.

    Filomena

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