Ensinar a
Sonhar: O Insólito nas Páginas Fantásticas da Terra Sonâmbula, de Mia Couto Em
Destaque
Escrito por Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira
Texto editado
para o blog
O
escritor moçambicano Mia Couto, para representar em sua ficção, a dor, a
miséria e as conseqüências traumáticas da guerra civil, que se seguiu à
anticolonial e que atropelaram o povo de seu país, tece a narrativa de Terra sonâmbula
(1992), utilizando elementos que se aproximam do realismo fantástico e do
maravilhoso e fazendo uma literatura de cunho engajado histórica e socialmente.
Numa entrevista a Nelson Saúte, Mia Couto fala a respeito do que pensa ser a
missão de um escritor em seu país:
O escritor moçambicano tem uma terrível
responsabilidade: perante todo o horror da violência, da desumanização, ele foi
testemunha dos demônios que os preceitos morais contêm em circunstâncias
normais. Ele foi sujeito de uma viagem irrepetível pelos obscuros e telúricos
subsolos da humanidade. Onde outros perderam a humanidade, ele deve ser um
construtor da esperança. Se não for capaz disso, de pouco valeu essa visão do
caos, esse Apocalipse que Moçambique viveu. (apud SECCO: 1999, p. 114).
Na ficção de Mia Couto, como nos autores mencionados,
predomina a valorização da cultura tradicional africana. A presença acentuada
do imaginário ancestral direciona as narrativas para o insólito. Os elementos
fantásticos presentes no texto e oriundos das cosmogonias africanas, são os
traços essenciais no confronto entre a tradição e o mundo atual e atuam aqui
como sustentáculo para que se dê a resistência da população assolada pela
guerra.
A narrativa de Terra sonâmbula inicia-se com o velho Tuahir e o menino
Muidinga abrigando-se num ônibus incendiado. O garoto, que fora encontrado num
campo de refugiados, quer achar seus pais e isso é apresentado como
justificativa da viagem, entretanto, a verdade é que eles "fogem da
guerra, dessa guerra que contaminara toda a terra. Vão na ilusão de, mais além,
haver um refúgio tranqüilo." (COUTO: 2007, p. 09). Deparam-se com muitos
corpos carbonizados. Quando vão enterrá-los, encontram um corpo estendido na
estrada e junto desse, uma mala em que há uma série de cadernos que contam a
história de Kindzu, o morto que ali estava. A partir desse ponto, duas
histórias são narradas paralelamente: a viagem do velho Tuahir e do menino
Muidinga, em onze capítulos e o percurso de Kindzu (história narrada em onze
cadernos), que procura os naparamas (guerreiros abençoados pelos feiticeiros e
que combatiam os "fazedores de guerra") e Gaspar, o filho de Farida,
mulher por quem o jovem se apaixonou.
Nesse
panorama desolador, sonhar é buscar refúgio para o sofrimento, é buscar esperança
onde não há pistas que levem a ela, é ter a coragem de ousar buscar caminhos
para suportar o tormento que parece não ter fim. A certa altura da narrativa,
já no fim, no décimo caderno de Kindzu, o fantasma de seu pai, Taímo, lhe
pergunta por que escreve:
- O
que andas a fazer com um caderno, escreves o quê?
- Nem sei, pai. Escrevo conforme vou
sonhando.
- E alguém vai ler isso?
- Talvez.
- É bom assim: ensina alguém a sonhar.
- Mas pai, o que passa com esta nossa
terra?
- Você não sabe, filho. Mas enquanto os
homens dormem, a terra anda a procurar.
- A procurar o quê, pai?
- É que a vida não gosta sofrer. A terra
anda a procurar dentro de cada pessoa, anda juntar os sonhos. Sim, faz conta
ela é uma costureira de sonhos. (p. 182) grifo nosso
Assim, o sonho é sinônimo de fé de que
ainda há esperança, o que também é mostrado em uma das falas do velho Tuahir.
"O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonha, a estrada
permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes
do futuro.
A narrativa de Mia Couto constrói-se com um desfile de
personagens e de situações que representam o culturalismo plural de Moçambique:
o preconceito moçambicano contra os árabes, que os portugueses reforçaram; os
naparamas, que lutavam com os "fazedores de guerra"; o velho
Siqueleto, que já assistiu a tantas desgraças e não se deixa mais abater, a
presença ameaçadora do colonizador, representado pelo personagem Romão Pinto;
Nhamataca, que acredita poder cavar até conseguir fazer um rio; entre outros.
Numa sociedade mergulhada em uma profunda crise econômica e
cultural, a ficção de Couto mostra a resistência "heróica" daqueles
que, por uma veia mítica e pelos caminhos da tradição oral, ainda
"ousam" ter esperança, não obstante estarem imersos em situações de
barbárie, arbitrariedades e abuso de poder. Escrita que potencializa o valor
dos sonhos e o seu talento para converter e regenerar a vida, representa uma
literatura engajada no âmbito histórico e também social, que cria e recria o
real opressor e opressivo, traços gritantes no Moçambique colonial e
pós-colonial.
Muito bom, há muito que aprecio a literatura do Mia Couto.O José Eduardo Agualusa, outro escritor, mas angolano, também faz muitas referências ao Mia Couto. São literaturas gostosas e que tem algo em comum com o Brasil.
ResponderExcluirFilomena