Uma Experiência
Significativa Com a Literatura Africana
Escrito por Consuelo Silva Almeira
O currículo e a cultura africana
A escola é um local em que a diversidade cultural deve ser assegurada
para que todos tenham garantido o direito de aprender e ampliar conhecimentos,
sem serem obrigados a negar a si mesmo, ao grupo étnico/racial a que pertençam
e adotar costumes, idéias e comportamentos que lhes são adversos.
Uma das finalidades do currículo é preparar os alunos para serem
cidadãos críticos e participativos de uma sociedade democrática. No sentido de
concretizar esse objetivo, urge que as instituições escolares se organizem de
forma a contemplar as experiências das crianças, para que os alunos não vejam a
cultura que comungam ser excluída ou descriminada, no ambiente escolar. Esse é
o grande desafio da educação, fazer com que os alunos pratiquem e exercitem
ações capazes de prepará-los para participar, ativamente, em sua comunidade.
Tomemos como ponto de partida Salvador, cidade multi-étnica e
pluricultural, na qual as raízes africanas florescem cotidianamente, a comida e
a música são presenças marcantes. Todavia, as literaturas afro-brasileira e
africana são desconhecidas pela maioria da população, que muitas vezes, sob
visão preconceituosa, associa as narrativas ao candomblé, por algumas
apresentarem os orixás nos seus textos. Partindo do pressuposto que a
literatura africana é vasta, torna-se primordial quebrar-se o paradigma de que
somente o patrimônio europeu deve predominar e que as culturas das classes
minoritárias, especialmente a indígena e a africana, só sejam contempladas no
âmbito folclórico. Para tanto, deve-se buscar meios de conhecer a diversidade da
população africana e, socializá-la no ambiente escolar, visando despertar nos
educandos a autoestima em ser afro-descendentes. Uma das alternativas são os
contos africanos, os quais revelam um mundo muitas vezes desconhecido, formado
de reis, príncipes, orixás e de homens fortes que lutaram pela liberdade.
Segundo Santoméi, quando se analisam os conteúdos que são desenvolvidos
no currículo comum das unidades escolares, observa-se que aquilo que é
enfatizado faz parte da cultura das chamadas nações hegemônicas. As culturas ou
vozes dos grupos sociais minoritários, quando não costumam ser negadas ou
discriminadas, são silenciadas.
A Lei Federal No 10.639/2003 que altera a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional fixadas pela Lei No 9394/1996, ao tornar obrigatório o ensino
sobre História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos estabelecimentos de
ensino fundamental e médio, é uma das políticas públicas adotadas pelo Governo
Federal com objetivo de reparar e reconhecer as desigualdades raciais e sociais
sofridas pelas pessoas negras. Mas será que com a vigência desta lei, as
instituições de ensino já estão desenvolvendo projetos que contemplem a cultura
africana? E se estão, como estes projetos estão sendo desenvolvidos?
Nesse sentido, o Conselho Nacional de Educação instituiu em 2004,
Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, objetivando
instrumentar as instituições de ensino com princípios, orientações e fundamentos
que norteiem à construção de projetos que versem sobre temáticas da Pluralidade
Cultural.
No entanto, ainda há uma necessidade latente em se investigar como os
educadores, diante da lei, vêm desenvolvendo projetos que considerem a cultura afro
brasileira, de forma a contribuir, significativamente, para formação da
auto-imagem positiva do aluno.
Inicialmente, o que se tem percebido é uma abordagem fragmentada e
estereotipada com relação à pluralidade cultural. O negro sendo relacionado à
música, ao tambor, à dança e à comida. Parece que a população negra, não produz
literatura, e se produz, ainda, não está incluída no currículo escolar. Como
espaço de socialização a escola interfere, e muito, no processo de construção
da auto-imagem. Numa perspectiva de uma educação plural, a identidade racial
deve ser aspecto central, em que passam os conteúdos escolares, as abordagens
metodológicas e as práticas pedagógicas. O aluno afro-brasileiro não deve ter o
horizonte limitado apenas à esfera musical, e sim, se perceber como um sujeito
capaz de produzir intelectualmente.
Angola na sala de aula
Na fronteira da mudança de valores e instauração de novas práticas, foi
pensado e concebido o projeto literário Descobrindo a África, em uma classe de
4ª série do ensino fundamental do Colégio Estadual Princesa Isabel, localizado
no bairro da Cidade Novaii.
Com o objetivo de despertar nos educandos o ideal de que a diferença
pode ser bela e que a diversidade é enriquecedora e não sinônimo de
desigualdade, o projeto desvendou a realidade de um país africano a partir da
literatura. Durante o III bimestre de 2005, fizemos uma incursão literária ao
conto africano As aventuras de Ngunga, de autoria de Pepetelaiii, tendo como
fio condutor de todas as ações desenvolvidas, o reforço à auto-estima.
A escolha da obra deu-se, a partir dos questionamentos dos alunos sobre
a dificuldade de se encontrar um texto no qual a personagem principal fosse
representada por um negro. Apesar do desafio, identificou-se no CEAFRO (Centro
de Estudos Afro- Orientais/UFBA), um exemplar do livro As aventuras de Ngunga.
Com uma perspectiva bastante significativa, a obra relata, em seu bojo, as
lutas nacionalistas angolanas, vivenciadas pelos negros para se libertarem da
colonização européia, dando-lhes um tratamento de herói. A personagem principal
é uma criança, que participa do movimento em prol da liberdade. Apesar do
caráter revolucionário, a narrativa transborda de beleza e magnitude.
Encontram-se presentes no texto os animais da floresta, os elementos da
natureza, os espíritos e símbolos sobrenaturais, representantes da cultura
africana.
Para que os alunos pudessem ter contato direto com o livro, decidiu-se
ir a um Sebo da cidade e adquirir dez exemplares. Como a sala era composta de
20 alunos, optou-se por trabalhar com o texto, na própria classe, em dupla. A
obra foi separada em capítulos, e a cada aula de Literatura, fazia-se uma
retrospectiva do capítulo anterior e iniciava-se o próximo.
Logo no início da história, os alunos desvendaram que a personagem
principal, Ngunga, era um menino órfão de 10 anos, que perdeu os pais em uma
das lutas nacionalistas de Angola e, que vivia nas florestas africanas, de
aldeia em aldeia, solitário e dependendo da ajuda dos habitantes até se
envolver na causa libertária e se transformar em um guerrilheiro modelo.
Durante a trajetória da narrativa, pode-se identificar o processo de
transformação psíquica que transcorreu com a personagem principal. Inicialmente
apresentando-se como uma criança insegura que sofre muito, diante da solidão e
da ausência de alguém que a ame realmente. "Por que ter de voltar? Ninguém
o espera no Kimbo, ninguém ficaria preocupado se ele não aparecesse. Quem se
lembraria de procurar Ngunga, o órfão, se morresse?"iv. A posteriore,
Ngunga se transforma em um guerrilheiro que enfrenta suas próprias ameaças e
aprende decifrar a realidade, identificando as armadilhas que aprisionam seu
povo.
Com o decorrer da leitura da obra, os alunos passaram a se identificar
com Ngunga. Para as crianças, era o herói ideal, que enfrentava todos os
problemas e lutava contra as injustiças. Um menino valente que não deseja
riqueza, honra, poder ou imortalidade, mas que aspirava à integridade, ao
conhecimento e à sabedoria. Um dos trechos mais eloqüentes da narrativa, é
quando o corajoso jovem desmascara o Presidente Kafuxi, ao alertar a comunidade
sobre a exploração e a mentira na qual estavam vivendo.
Em contramão as denominações negativas em relação à cor preta, que podem
levar as crianças negras, por associação, a sentirem horror à sua pele negra, o
texto exerceu nos alunos uma influência positiva, posto que representasse a
figura do negro como herói e portador de valores éticos. Tal afirmativa foi
constatada ao observar que no intervalo das aulas, as crianças dramatizavam as
lutas revolucionárias angolanas e era uma briga para definir quem faria a
personagem de Ngunga. Lacan elucida essa questão ao antecipar que: "[...]
a identidade é formada, ao longo do tempo, através da interação com o
"Outro" e que a construção de uma auto-imagem positiva incide ao fato
de existir referências que respaldem essa auto-imagem “v.
Assim, os alunos viram em Ngunga, a representação de uma criança negra,
um referencial positivo. Com o passar das páginas, os alunos mergulharam no
universo angolano, aprendendo, de forma panorâmica, sobre a diversidade
artística e cultural, os costumes, a geografia, o clima, a história política e,
principalmente sobre o processo de revoltas que Angola passou para se libertar
de Portugal, situando danos causados pela exploração colonial e imperialista.
Que pela revolução uniram-se a esse movimento de intensas lutas e de profundas
tensões, intelectuais e analfabetos, crianças e adultos, negros e brancos -
africanos ou estrangeiros - que comungavam do mesmo ideal de liberdade, tudo
apostando na utopia de que com as suas vidas estavam a construir a soberania de
uma nação.
Os educandos observaram as semelhanças entre a cultura de Angola e da
Bahia, principalmente no que tange às mazelas sociais. Através de entrevistas
com estudantes de nacionalidade angolana, descobriram que existe uma influência
muito grande do Brasil em Angola, que as novelas brasileiras são transmitidas
no país e os produtos vendidos nas feiras livres.
Com o protagonista da história, as crianças extrapolaram as expectativas
do projeto e aprenderam a lição da reconstrução de uma pátria, a partir do
trabalho paciente e constante que alimenta a esperança. O significado da festa
que reúne várias aldeias, motivo de alegria e celebração que marca vários procedimentos
habituais da sociedade africana: a importância da participação da coletividade
em todos os acontecimentos; a parceria tanto na preparação dos alimentos,
quanto nas atividades revolucionárias; o respeito à fala dos mais velhos; e,
sobretudo, o estabelecimento da reunião comunitária como espaço de troca de
informações.
Na narrativa, Ngunga representa o ser honrado, que denuncia o
desrespeito às tradições e aos costumes que precisam ser mantidos. Tal
afirmativa ilustra-se, em uma fala em que a personagem principal alerta Imba
sobre o comportamento inadequado do pai dela, o Presidente Kafuxi:
Lá estava ele sentado ao lado do responsável pelo setor e de outros mais
velhos. Quando falava, os outros guardavam silêncio. Mas, se eram os outros a
falar, ele gostava de interromper, o que era contra os costumes. E os outros aceitavam.
vi
O mundo africano possibilita à criança afro-brasileira o referencial
positivo, visto que é rico de valores e tradições, em que o pensar e o sentir
estão interligados. Nas narrativas, pode-se identificar a presença deste
universo, uma vez que, em suas histórias está contido o modo de vida africano,
sua religiosidade, as atividades desenvolvidas nas comunidades, as relações
interpessoais e familiares, a culinária, a música e as vestimentas utilizadas
nos rituais.
A partir do estudo realizado sobre Angola, tomando como ponto de partida
a narrativa As aventuras de Ngunga, pode-se inferir que, a literatura africana
refere-se ao cotidiano, ao trabalho, à guerra e ao amor. Neles os negros não
estão representados como escravos, passivos e fracos que aceitaram o cativeiro
imposto pelos europeus. Ao contrário, são retratados como homens fortes,
senhores de sua vontade, filhos da divindade. Pessoas que se reúnem de forma
organizada, para defender os ideais que acreditam.
A originalidade dos contos expressa formas específicas de transmissão
dos valores da tradição, formadores de caráter educativo, em que a experiência
vivida é capaz de gerar sabedoria. Nesse sistema, a comunicação ocorre de maneira
intergrupal, direta e dinâmica acompanhada de cânticos, danças e dramatizações.
Segundo Lacanvii, a identidade é formada ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, não é algo inato, existente na consciência, no momento
do nascimento, ela é construída a partir de nosso exterior, pelas formas
através das quais nós imaginamos ser visto pelo outro.
Dessa forma, se não estiver presente na sala de aula um referencial
positivo em ser negro, a criança não tem como construir uma auto-imagem positiva
de ser afro descendente, a partir, apenas, dos contos de fadas dos irmãos
Grimm, Branca de Neve, A Bela Adormecida e outros, nos quais as personagens são
exemplo étnicos de uma cultura imperialista e colonialista que sempre buscou
desenvolver um poder ideológico, para que os povos colonizados esquecessem sua
identidade em detrimento da deles. Nessa perspectiva, aponta-se a necessidade
de se repensar elementos para construção, gradativa, de um referencial positivo
de ser afro-descendente, refletindo sobre atitudes preconceituosas e
despertando a crença na liberdade, no respeito, na alteridade, na tolerância e
na apreciação de tradições e valores alheios. Para tanto, é necessário que, as
escolas desenvolvam projetos que contemplem a diversidade cultural do Brasil,
assegurando a construção de princípios e valores de respeito mútuo e de
convivência harmoniosa entre os povos.
Referências bibliográficas:
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF, CNE, 10 de março de 2004.
Petronília Beatriz Gonçalves e Silva (Relatora). _______. Lei nº 10639, de 9 de
janeiro de 2003. Diário Oficial da União de 10 de janeiro de 2003. _______.
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LACAN, J. "The mirror stage as formative of
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MACHADO, Vanda. Ilê Axé: vivências e construções pedagógicas crianças do
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PEPETELA. As Aventuras de Ngunga. Autores Africanos. São Paulo, Ática,
1980.
SANTOMÉ, Jurjo Torres. "As culturas negadas e silenciadas no
currículo". In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.) Alienígenas na sala de aula: uma
introdução aos estudos culturais em educação. 6ª edição. Petrópolis: Vozes,
2005.
i SANTOMÉ, 1992 apud SILVA, 2005, p. 65.
ii Bairro popular, em que a maioria da população é constituída de negros
e mestiços.
iii PEPETELA, 1980.
iv Idem, ibidem., p. 13.
v LACAN, 1977, p. 28.
vi PEPETELA, op. cit., p. 8.
vii LACAN, op. cit., p. 25.
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